Thursday, May 18, 2006

Quinze Pedras

Há muito venho postergando minha visita ao Kinkakuji, talvez o principal ponto turístico do Japão. Mas aproveitei o feriado (comemoracao da fundacao da universidade, orgulhosamente a mais antiga escola de economia da Asia) e resolvi rodar a região em que localiza o Kinkakuji, nos arredores de Kyoto, a menos de uma hora de trem de onde estou morando. Em um dia, e possivel para visitar uns três ou quatro templos, dependendo da sua disposição em andar e do tempo que você gosta de passar vendo, digamos, “coisa velha”. Bom, eu adoro esse tipo de programa. Acordei às sete da manhã e saí, ansioso pelo tão falado Pavilhão Dourado. O templo, construído em 1397, foi reconstruído em 1955 depois de um incêdio causado por um fanático religioso. O incidente foi imortalizado em livro homonimo de Yukio Mishima, escritor consagrado no Japão. O lugar e certamente maravilhoso. O templo, dourado e em estilo arquitetonico japones, se localiza na beira de um lago, cheio de carpas e o parque que o rodeia fica todo florido nessa epoca do ano (eu nem sabia que vitoria-regia dava flor!). Mas a surpresa do dia não foi o Pavilhão Dourado, mas o templo vizinho, da mesma seita. Não é certamente um dos pontos obrigatórios para turistas que passam menos de uma semana no país. É, na verdade, um templo menos conhecido (embora relativamente famoso) e não possui grandes atrativos senão pelo jardim de areia e pedras. Lendo uma descricao dessas em um guia turistico, nao e um templo que mereca uma hora e quinhentos ienes. Mas o jardim e aquele que originou o popular passa-tempo de mesa a que se acabou chamando “jardim zen”. Um jardim em miniatura, com areia branca e algumas pedras, arranjadas com a respectiva miniatura de um arado. Trata-se de um item obrigatório sobre as mesas dos gurus da administração da decada de 1990. Alguns deles sugerem que mover as pedras e uma forma de relaxamento. Outros, mais audaciosos (e, creio, pouco profissionais), sugerem uma analogia entre pedras e empresas. Em geral, entretanto, eles não têm a minima idéia de onde veio o jardinzinho. Quanto mais sobre a quantidade de pedras. O original, entretanto, possui pedras relativamente grandes. Mais especificamente, quinze pedras. Contadas e recontadas, por monges especialistas e turistas leigos, nos ultimos mil e tantos anos. Mas o interessante é que, ao entrar no corredor de onde se vê o jardim, não se contam quinze pedras. De jeito nenhum. Mesmo andando o corredor inteiro, brigando por um lugar em meio a tantos turistas curiosos e incapazes de encontrar a decima quinta, não se contam quinze pedras.

Diferente dos turistas, sem tempo para contar pedras, ou dos japoneses, sem curiosidade para contar pedras, eu dei três voltas no mesmo corredor. Esbarrando em turista falando tudo quanto e lingua. Esbanjando tempo e curiosidade, coisas escassas em turistas, mas abundantes em monges. Nem como turista, nem como monge, encontrei a decima quinta!
São cinco conjuntos de três pedras, distribuídos sem qualquer ordem aparente por um jardim de quinze por cinco metros de areia branca. Mas os grupos estão organizados e dispostos de tal maneira que, de qualquer ponto do corredor, a maior pedra dos grupos existentes nos cantos esconde a menor. E, sob qualquer ótica (claro, exceto se você entrar no jardim ou tirar uma foto aérea, mas imagino que o jardim seja arado para que ninguem tente trapassear e entrar no jardim para contar as pedras, deixando pegadas na areia!), não há como enxergar as quinze.
A idéia (e, a partir daqui, essas “idéias” se referem a “minhas idéias”) é que não é possível entender o todo sob um único ponto de vista. E muito menos sob muitos pontos de vista. É preciso juntar todos esses pontos de vista em uma mesma realidade (em especial, isso vale para nós, economistas, sempre tentando reduzir a realidade a um homem economicamente racional, desconsiderando aspectos políticos, sociais ou mesmo religiosos e emotivos).Não sei se essa foi o objetivo do monge arquiteto, que falecera sem deixar explicações de sua obra. Mas o método ascético da escola, a auto-descoberta e resolução de paradoxos (como o questionamento do barulho da palma quando batida com apenas uma mão), está cheio de exemplos do tipo. Mas o exercício me chamou a atenção e justificou os cinquenta dólares e um dia inteiro andando por 5 templos. Exceto pelo Kinkakuji, todos fora da rota de um turista com pouco mais de duas semanas para visitar o pais inteiro

Sunday, May 07, 2006

Dorinha, Sr. Matsumoto e o Respeito aos Deficientes

Do pouco que eu conheco, no Japao, ha tres niveis de cabeleireiros, dependendo do servico (e do respectivo preco) que o fregues deseja.
Primeiro, os cabeleireiros de executivos. Eles se localizam proximo aas estacoes, prometem cortes em menos de meia hora, sem tesoura e cobram entre JPY 1.000 e 2.000 (aprox. USD 10 = JPY 1.000). E sentar, colocar o avental, sentir um zum-zum, levantar e pagar. Nao da tempo nem de reclamar, porque ha outro na fila tambem com pressa.
E o servico, claro, justifica o valor e o tempo: inaceitavel para os meus padroes nao la muito rigidos em relacao a vaidade e higiene.
Por outro lado, ha os chamados “saloes de beleza”, em que se paga acima de JPY 5.000 para “cortar as pontas”. Voce passa mais de meia hora esperando na fila (sim, o servico e disputadissimo) e mais meia hora esperando os tres ou quatro especialistas em cada area, que se apresentam em ordem de idade. Um jovem prepara o avental. E lava seu cabelo. Outro um pouco mais adulto massageia seu cabelo. E corta as pontas. Finalmente, um senhor da forma ao corte. De forma inversa, o mesmo cara de meia idade te faz a barba. E o mais jovem limpa o resto.
Enfim, nao se passam menos de uma hora e meia (e cinquenta dolares) em um lugar desses. Claro, ha diversas revistas (devo acrescentar), todas abordando o mesmo assunto que se espera de um “salao de beleza”, em qualquer canto do mundo: fofocas (em japones sobre novelas a que eu nao assisto).
Entre esses dois padroes, ha os cabelereiros, digamos, “intermediarios”. Sao aqueles utilizados por pessoas normais. Como eu. Sao pessoas que prezam tanto por um minimo de higiene tanto quanto por um maximo de dinheiro.
Fui cortar o cabelo. Estava procurando um cabeleireiro que cobrasse menos de JPY 3.000 (porque acho um absurdo um cabeleireiro ganhar mais de tres vezes mais do que eu), que cortasse com tesouras e escutasse o que eu quero para o meu cabelo.
Ja havia uma semana por que eu estava postergando o corte, quando encontrei um cabeleireiro anunciando cortes “normais” por JPY 2.300. Dei uma olhada no local, nos profissionais, na caixinha de esterilizacao (habito tipico da minha geracao pos-HIV), nas toalhas quentes... Afora o preco e a proximidade da estacao, nada estranho.
Entrei. Mas logo ao entrar, fui recebido por um senhor discreto. Sem filas. Os japoneses (pasmem) nao costumam receber um cliente discretamente. Mesmo antes de entrar em qualquer estabelecimento comercial, o profissional costuma gritar um sonoro “IRASSHAIMASE”, cuja traducao mais adequada que eu posso sugerir seria “Venha, estou cheio de energia para te servir!” (embora eu, pessoalmente, ache insuportavel e prefira lojas mais discretas – embora menos competentes, para a opiniao dos japoneses).
Pois bem. O senhor, que ate entao lia um jornal, se dirigiu a mim, pegou minhas coisas e me encaminhou a uma cadeira (as cadeiras dos barbeiros japoneses merecem uma descricao a parte), identificada por uma plaqueta em que se lia “Matsumoto”, supostamente, o nome do tal senhor. Um outro senhor mais idoso nos acompanhava. Este, sim, me assustou com o tal “Irasshaimase”. E me indagou sobre o tipo de corte qeu eu queria. Curioso, respondi. Sem entender porquee eu precisaria do bom velhinho para dizer o que eu queria ao Sr. Matsumoto que me atendera inicialmente (e que parecia ser aquele que cortaria meu cabelo).
E eis que o idoso se vira para o barbeiro e comeca a fazer gestos relativamente faceis de associar ao que eu acabara de dizer. O barbeiro Matsumoto era mudo (Alo, Mamae! Eu sei que nao existem Surdos-Mudos!). Foi uma experiencia muito interessante. De inicio, porque ele nao me encheu o saco, me perguntando se eu havia visto o ultimo jogo de basebal ou com o que eu trabalho. Eu consegui rever toda a licao que havia estudado na aula que tive antes de topar a barbearia, pela primeira vez na cadeira de uma barbearia. Mas, principalmente, porque o cara e muito bom! Com gestos, pedi a ele para endireitar a costeleta, cortar mais curto, navalha aqui e nao la, onde dividir o cabelo e coisas do tipo. Sem problemas. Ao menos ali, a comunicacao nao foi necessariamente verbal.
Mas o mais interessante, foi chegar em casa e comecar a ler os gibis da Turma da Monica! Pela primeira vez (e eu acompanho as aventuras da turma ha mais de quinze anos), apareceu a tao esperada Dorinha! A primeira personagem cega (veja qeu o Humberto, que ja existia na decada de 1980, e mudo). E as dificuldades por que ela passa no bairro do Limoeiro sem poder enxergar.
Nao tenho duvidas de que e muito mais facil ser deficiente no Japao que no Brasil. As ruas tem sinais sonoros e caminhos especiais, corrimaos, as maquinas falam, todos respeitam como se nao fossem deficientes. Deficientes mentais tambem andam pelas ruas sozinhos. Pegam trens, compram coisas. Todos sabem (e os aceitam) como normais. Porque assim o sao. A deficiencia fisica ou mental nao e uma barreira (ao menos tao intensa quanto no Brasil). Ha outras deficiencias muito mais severas e nao respeitadas por aqui, como a preguica ou a pobreza.
Espero que haja muitos pesquisadores brasileiros competentes por aqui estudando como levar essas facilidades para o Brasil. Porque, pelo que tenho estudado, sera necessario um exercito de economistas para conseguir implementar no Brasil um modelo que melhore uma de nossas mairoes deficiencias. E uma deficiencia em que eu desempenho algum papel, por menos relevante que seja. A deficiencia de renda. Tambem conhecida como pobreza.
[Comentarios de estilo tambem sao bem vindos: condensei muitas ideias em um unico texto?]